sexta-feira, dezembro 01, 2006

Da amizade e da compreensão

Para a Voz da Serpente:


«Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que os abismos os puxam e devoram. Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares. As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo. Como sangue somos lágrimas. Como sangue, existimos dentro dos gestos. As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos. E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos. O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado. Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.
Depois das nuvens, no último lugar do mundo, ficamos aonde não chegam as vozes. Os nossos olhares estendem-se aos cantos mais esquecidos das casas, ao fundo do mar, aos lugares que só os cegos vêem, às rochas cobertas por folhas na floresta, às ruas de todas as cidades. Os nossos olhares tocam os lugares iluminados e tocam os lugares negros. Ninguém e nada nos pode fugir. À noite, estendemos os braços para entregar uma bala, ou um frasco de veneno, ou uma lâmina, ou uma corda. À noite, tocamos em rostos. E sorrimos. O som de um tiro. O fogo dentro de um frasco de veneno. Sangue a secar na linha de uma lâmina. Uma corda esticada na noite. Morte fogo sangue morte. E sorrimos. Longe da lua, depois das nuvens, o nosso rosto é uma ferida aberta no céu da noite. O mundo, diante de nós. Podemos tocar-te agora. Com o movimento mais pequeno de um dedo, podemos destruir aquilo que te parece mais seguro. Estás diante de nós. Se quisermos, podemos tocar-te. Se quisermos, podemos destruír-te.
Dentro e sobre os homens, somos o medo. São as nossas mãos que determinam a fúria das águas, que fazem marchar exércitos, que plantam cardos debaixo da pele. Sabemos que nos conheces. Em algum instante da tua vida, enchemos-te e envolvemos-te com a imagem da nossa voz, a imagem do nosso significado, o silêncio e as palavras. Num instante que escolhermos podemos voltar a encher-te e a cobrir-te. Sabemos que conheces o frio e a solidão à margem das estradas quando a noite é tão escura, quando a lua morreu, quando existe um deserto negro à margem das estradas. Olha para dentro de ti e encontrar-nos-ás. Olha para o céu, depois das nuvens, e encontrar-nos-ás. Nunca poderás esconder-te de nós. Esse é o preço por caminhares sobre a terra onde, um dia, entrarás para sempre. As últimas pás de terra a cobrirem-te serão as nossas pálpebras a fecharem-se. Só então poderás descansar.
Somos o medo. Conhecemos tantas histórias.
Todos os amantes que olham pela janela e imaginam que se perderam para sempre. Todos os homens que, num quarto de hospital, abraçam os filhos. Todos os afogados que, pela última vez, levantam a cabeça fora de água. Todos os homens que escondem segredos. E tu? Escondes algum segredo? Não precisas de responder. Conhecemos a tua história. Vimos-te mesmo quando não nos vias. Vemos-te agora. Escondes algum segredo? Responde quando te olhares ao espelho. O teu rosto duplicado: o teu rosto e o teu rosto. Quando vires os teus olhos a verem-te, quando não souberes se tu és tu ou se o teu reflexo no espelho és tu, quando não conseguires distinguir-te de ti, olha para o fundo dessa pessoa que és e imagina o que aconteceria se todos soubessem aquilo que só tu sabes sobre ti. Nesse momento, estaremos contigo. Envolver-te-emos e estarás sozinho.
Depois das nuvens, sobre os homens, debaixo da pele, dentro dos homens, esperamos por ti. Estamos a ver-te agora, enquanto lês. Estaremos a ver-te quando deixares de pensar nestas palavras. Dentro e sobre o teu rosto, sabemos os teus segredos. Sabemos aquilo que escondes até de ti próprio. Não nos podes fugir.
Na palma das nossas mãos seguramos o teu coração. Se quisermos, podemos apertá-lo agora. Se quisermos, podemos esmagá-lo. Não podes fazer nada para nos impedir. O nosso olhar está parado sobre cada um dos teus gestos e sobre cada uma das tuas palavras. Diz uma palavra agora. Faz um gesto. Sorrimos perante as tuas palavras, como sorrimos perante o teu silêncio. Ninguém poderá proteger-te. Ninguém pode proteger-te agora. És ainda menos do que imaginas. Nós assistimos a mil gerações de homens como tu. Para nosso prazer, deixámo-los caminhar pelas linhas das nossas mãos. Para nosso prazer, tirámos-lhes tudo. Guiámos gerações inteiras de homens por tunéis que construímos em direcção a nada. E, quando chegaram ao vazio, sorrimos. És igual a todos eles. Esperamos por ti dentro e sobre o teu rosto. Continua o teu caminho. Segue por essa linha da nossa mão. Nós sabemos onde termina esse túnel em que caminhas. Continua a caminhar. Nós esperamos por ti. Sorrimos ao ver-te. Depois das nuvens, somos o medo. Debaixo da pele, somos o medo
José Luís Peixoto, "Dentro e sobre os homens" (in Antídoto)
Acho que nunca em toda a minha vida, procurei tantas respostas às imensas perguntas que bailam na minha cabeça. Começo a recear a noite, que tantas vezes me acolhe sem nada perguntar, porque fico mais só do que alguma vez fiquei. Posso afirmar-te que quase consigo mergulhar as mãos, limpas, dentro do meu cérebro.
Revolvo, amasso e volto a revolver.
Mudo tudo de sítio e volto a colocar nas primeiras posições. Páro e nada está no local onde eu havia deixado. Volto mais uma vez, regresso dentro de mim e revolvo na esperança de encontrar uma resposta, mas depois sinto que de um momento para o outro me esqueci do que procurava e então tiro tudo do sítio, mais uma vez, e não está lá nada, só as perguntas a camuflar as respostas e desespero, porque as palavras da solução são invisíveis e desta vez, só por esta vez não as consigo ver. Fico ali, sentada no chão da minha cabeça a olhar o céu que é cada vez mais escuro e as trevas sobem por mim acima e eu não me consigo mexer e choro e desespero e vejo que chegei ao fim da procura, continuo sem respostas e os meus olhos estão em brasa e eu, meu querido J... eu não faço qualquer sentido.
Normalmente, desisto da busca, adio-a para a noite seguinte.
Sento-me no chão do meu quarto, acendo um cigarro mais desesperado do que eu, porque prefere arder no seu próprio fogo do que deixar-se queimar no fogo de outrem e sento-me ali,tipo uma criança que se senta no chão e começa a mergulhar as mãos na terra e brinca e ri, porque gosta do modo como sente a terra a escorrer-lhe de uma mão para a outra. Eu brinco assim com o vazio e passo-o de uma mão para a outra e deixo-o caír-me sobre o cabelo até que me inunde o olhar e depois, ao fundo, a banda sonora de catarse, e choro, choro muito, provoco um dilúvio. Em seguida levanto-me e vou deitar-me para não conseguir dormir.
No fim de tudo isto, de todas estas palavras que não sei porquê me apeteceu escrever-te, continuo a sentir, a achar, que perdi o sentido.
Não sei onde. Não sei quando.
Esqueço-me em vida e jamais me lembrarei em morte. Ao fundo, a música continua...

2 Comments:

Blogger Klatuu o embuçado said...

O Peixoto não me convence, mas gostei do post.

4/12/06 08:35  
Blogger Winterdarkness said...

Quando nos sentimos perdidos não temos a certeza de nada; tudo é confuso e tudo parece existir para nos fazer sofrer e duvidar até de uma forte amizade mas temos que tentar não nos deixar levar pelo "calor" do momento; temos que dar tempo ao tempo e deixar a poeira assentar (uma grande amiga disse-me isto também ;)). Não pode ser apenas o "sangue" a dar cor à escuridão; eu tento convencer-me disso! Beijos grandes

6/12/06 05:15  

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