segunda-feira, março 20, 2006

Os apóstolos desceram à terra para beber uns copos

Houve uma noite em que saí à rua carregada de esperanças. Seria a minha primeira noite num mundo diferente do meu, em que iria descobrir que os corpos escorregam pela calçada tão facilmente como o entornar de um copo. Em que voltaria ao casulo com o olhar demasiado triste, como é habitual, e com as mãos trémulas no vazio.
Lembro-me de estar no Tocsin, de me sentir galvanizada com a música, de deambular pelas paredes, até que senti uns olhos pequeninos e intrigados que me vigiavam. Virei-me e olhei também. Gosto de uma batalha de olhares até ao momento em que alguém tem que ceder e consecutivamente, uma das cabeças acaba por se baixar. Mas neste caso não.
O dono dos olhos minúsculos fitou-me intensamente. Acabei por me sentar num daqueles bancos da sala ao lado da pista, para mais descansadamente deixar os meus pensamentos varrerem ruas na procura de um outro olhar. O "olhar de mar".
O ser, pequeno como os seus olhos, sentou-se ao meu lado. Continuei em silêncio enquanto o examinava de soslaio. Pele sepulcralmente branca, cabelo curto claro, bigode queirosiano. Fumava um cigarro, como se fosse o primeiro de toda a sua existência e olhava-me como se vasculhasse cada recanto obscuro dos meus segredos.
"Sou Pedro. Por que carregas um peso tão grande?"
Silêncio
"A tua aura é negra, sabes isso não sabes?!"
Afirmei que já o sabia.
"Devias permitir-te ser humana, seria mais fácil para ti e para os que te rodeiam."
Estou farta! Passei demasiado tempo em discussões que não devia ter tido, a dizer que não quando queria dizer sim, travei batalhas que não eram minhas. Criei uma imagem de força, quando sei que estou prestes a desabar. Estou cansada que me olhem como um exemplo a seguir... cansada até à morte.
"Impões tarefas demasiado árduas a ti própria. Só precisas de ser salva de um ser."
Esboçei um sorriso.
De quem é que preciso de ser salva?
"De ti!"
Escondi a cara com o cabelo, enquanto acendia um cigarro. Tinha cerca de cinco segundos para recuperar o fôlego. Ele levantou-se e saiu. Deixei-me ficar sentada, a música estava alta, acho que era a "Into my arms" dos Deine Lakaien. Não tenho a certeza, porque não consegui fazer a distinção entre a canção e o latejar do meu cérebro.
"Só mais uma coisa."
Ele estava novamente na minha frente, agora mais pálido e eu mais assustada.
"Ele tem medo de ti, sabes?"
Limpei uma lágrima e fui dançar.

Numa das noites habituais em Coimbra, em que se faz o roteiro da "praxe", exactamente duas semanas após a minha ida ao Tocsin. Café no sítio do costume, a bebida do costume, conversas acima de qualquer interesse banal, saída para a rua à hora do costume e a caminhada habitual até ao NL. Sim! Acho que sou um animal de hábitos, consoante a disposição que envergo. Resuma-se da seguinte forma: o hábito faz o monstro e não o monge.
Noite com demasiada bebida, danças frenéticas quando a música o permitia, deambulações de rosto em rosto, conversas em tom elevado para fazer chegar aos ouvidos as parcas palavras que a vida, demasiado conflituosa, permite. Evita-se o toque que não se deseja e assim se chega ao ponto da noite em que é necessário aquietar. De novo o cérebro ebule em imagens, em questões sem resposta.
Ao meu lado um vulto negro, quieto, impávido. Parece querer vir falar comigo. Não ligo.
Naquele momento estava em mil locais diferentes, todos demonstráveis por um único nome, mas não estava ali, no meio daquelas pessoas.
"Tu não és deste mundo pois não?"
Sorri para mim enquanto pensava que a minha vida se estava a tornar mais anormal (ainda) do que o normal.
"O meu nome é Paulo. Quando entraste, perguntei-me se te aperceberias que todas as pessoas te olharam, é impossível não ver a tua aura!"
Encarei-o. Um homem alto, forte, cabelo negro e olhos metálicos. Nada igual ao outro ser que me tinha abordado, duas semanas antes.
Já agora, o que é que tem a minha aura?
"A tua aura sente-se, é negra! Mas tu sabes isso!!"
Já me disseram. Deve ser por isso...
"Por isso o quê? É por isso que insistes em carregar um fardo que não é teu?"
Não! Acho que é por isso que tudo acaba à minha volta. Sinto-me uma verdadeira rainha de desertos.
"Devias baixar um pouco as expectativas."
Que tenho para com os outros?
"Não! As que tens perante ti."
Sorri, pensei que estava a ter o chamado "deja vu".
"Antes de me ir embora e acredita que nunca mais me irás ver, quero dizer-te algo."
Diz! Eu ouço-te.
"Esse homem tem medo de ti."
Qual homem?
"Esse! Aquele que não esqueces. Ele tem medo de ti, porque sabe que tu és a vida dele..."
Encostei-me à parede e escorreguei até ao chão.

10 Comments:

Blogger Sorrow_Leviathan said...

se os apostolos disseram isto eu (magdalene) a pecadora, digo te k isto ainda nao acabou!de facto ele tem medo de ti mas todos os medos acabam por ser superados!

20/3/06 10:35  
Anonymous Anónimo said...

Por vezes assim é...por medo se estagna e recusamo-nos a aceitar o que é tão evidente...beijinhos e votos de uma boa semana :)

20/3/06 13:35  
Blogger Black Rider said...

"És vida nele", logo tem medo. O "problema", se é que existe, não está nem em ti nem na tua aura. Apenas na fraqueza dos outros.

."sateforp soslaf so moc odadiuC"

20/3/06 19:47  
Blogger Hermengarda said...

Aplausos... De pé!
O "problema", se é que existe, não é um homem.

21/3/06 07:07  
Blogger A said...

O "medo" é a pura ilusão de quem não encara a verdade. Noutros tempos dir-te-ia "pinta os lábios e faz-te à vida"...

Todos vivemos em mundos supostamente paralelos e há quem tenha necessidade de ver coisas onde elas não existem. Apenas para não agarrarem a vida. Conhecemo-nos demasiado bem; sabes que sou realista. Tu não tens medo "dele" nem "ele" de ti. Do que tens medo é da vida, amiga.
E as expectativas têm de estar à altura do que temos também para dar. O resto é psicologia da treta ;)
Beijo enorme

21/3/06 07:46  
Blogger A said...

Ah! Grande final de história. Adorei.
Mas levanta-te a seguir.
Dos fracos não reza a história...

21/3/06 07:47  
Blogger EyeOfHorus said...

Hermengarda, sabe bem ter-te por aqui.
Beijos

21/3/06 08:28  
Blogger Winterdarkness said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

23/3/06 04:13  
Blogger Winterdarkness said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

23/3/06 04:13  
Blogger Winterdarkness said...

A minha net hoje tá tão má que tive que apagar dois coments pq ficaram incompletos!! Bem gostei muito do texto e a parte final está brutal! Acho que sermos corajoso passa tb por admitirmos os nossos medos e fraquezas e conseguirmos seguir em frente apesar de tudo isso! Kisses

23/3/06 04:15  

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