quinta-feira, dezembro 14, 2006

Hiato da realidade (ainda)



«Não existiram palavras durante 150kms. Só o olhar transmitia os contornos dos pensamentos de cada um. Impossível formalizar o seu conteúdo específico em algo comunicável. Porque consequência da contemplação de Tool, é um silêncio inundado de compaixão.
As primeiras expressões deram lugar à partilha. De uma perspectiva observadora, chega-se à procura do que distingue os fenómenos. Se descrever Tool em termos de bio-diversividade na audiência, quanto à performance, à capacidade técnica, ao rigor ou coerência, à integridade, à temática, pode ser redutor, definir Tool é perigoso – pode transportar-nos para um meio demasiado individual e interpretativo, afastando-se do que é apreciável e a partir daí, dedutível.
Apenas depois da redenção da ausência da sequência Wings for Marie (Part 1) e 10,000 Days (Wings Part 2) no concerto de 5 de Novembro no Pavilhão Atlântico, posso escrever estas impressões.
A obra de Tool é única. Os humanos envolvidos na sua criação são também únicos. Tendo nós a necessidade de ouvir som na forma de música, o acaso pouco coincidente de tais humanos se terem unido na criação artística deve ser celebrado. Em concerto, em pleno.
O móbil pode ser a música, mas a comunicação é feita pela convergência de som, imagem e linguagem. Adam Jones é um humano assustador. Transfigura a côr e a forma. Investe no instrumento e emite sons como se caminhasse no espectro sonoro com as mãos. No entanto, fixa o olhar, estático. Impetuoso, porém, quase sem movimento. Danny investiga os limites da percepção do tempo como ritmo – o que é regular ou irregular, como comunicar através de peles, de sons percussivos: o que é acompanhar noutros, aqui tem as suas próprias sensações. Justin sente arritmicamente o que toca, busca o som, busca, com retoques de simplicidade, expressar-se com o veículo em que melhor encontra as ferramentas, manipula, manuseia. Maynard, contém nas parábolas que descreve o que rege os humanos, o que dominou o séc. XX – o cérebro. Pensamento, comportamento, relacionamento.
O modelo de concerto de Tool ultrapassa a linearidade convencional. O modelo de concerto celebrizado no séc. XX, onde os humanos vão ver como o guitarrista, o baixista, o baterista e o vocalista tocam as músicas, está redefinido em Tool. Já esteve mais distante, quando a disposição omitia a voz. Agora a disposição é do tipo quarteto de cordas, alargado para deixar o centro do palco vazio. Mas a complementaridade entre a interpretação daqueles artistas, da potência acústica, da qualidade tímbrica, do excêntrico com o trivial, da côr, da luz, das palavras, transporta para uma dimensão onde tomamos contacto com a obra de Tool. Por momentos, esperando um dia alcançar essa sensação durante toda a duração, há uma tendência hipnótica, tornando o acto de assistir a este concerto uma experiência paradoxalmente acusmática – ouvir um som do qual não se vê a origem, o emissor; estar num concerto onde a complementaridade, a integridade, a coesão de todos os parâmetros dissolve a existência de emissor – de quatro humanos em palco a tocar instrumentos e a cantar palavras.
Tool tem Identidade.
Os olhos da pandilha desceram as pálpebras. Até ao regresso, no próximo verão.»
David Miguel, TOOL - 10000 Days

4 Comments:

Blogger EyeOfHorus said...

Ainda e sempre, relembro o bater mais forte, do coração, aquando dos primeiros acordes, o olhar comovido, o esquecimento da realidade durante aquelas horas... O silêncio recheado de emoção durante a viagem como se cada quisesse guardar,só para si, o turbilhão de sensações. Depois veio o regresso à realidade e a recusa da mesma. Continuo, até hoje, com a sensação de, naquela noite, ter assistido a um verdadeiro milagre.

Obrigado por me teres "emprestado" as tuas palavras.
Black nº1 kiss

14/12/06 05:00  
Blogger A said...

Um beijinho a esse senhor gajo David que partilhou comigo uma pista de dança em Coimbra :)


David, meu rapaz... tens futuro!

Quanto a ti, senhora dona do Blog... pois... a gente conversa depois ;)

Beijos enormes

14/12/06 10:01  
Blogger Lilis said...

Foi excelente... Bjus

18/12/06 15:10  
Blogger Winterdarkness said...

Após ler este texto fico realmente com pena de não ter ido a este concerto; mas tb não podemos ter tudo n é? Enfim, parece que o concerto de Tool foi um espectáculo inesquecível, algo que vai permanecer gravado fundo na memória dos que lá estiveram presentes. Mas temos sempre belos testemunhos como estes que nos ransmitem um pouco da bela noite que deve ter sido.

22/12/06 09:17  

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