Num emaranhado de sonhos estranhos, sonhei contigo. Com aquele momento em que caíste à minha frente. Vivi tudo isso novamente, o meu voltar de cabeça, o meu grito de NÃO ao ver-te escorregar escadas abaixo, o momento em que cheguei ao pé do teu corpo caído no chão e mergulhei os dedos nos teus caracóis tingidos de vermelho. A poça de sangue que alastrava sobre o mármore. As minhas mãos ensopadas em vermelho. O teu olhar aflito à procura dos meus olhos. A tua voz trémula a dizer-me "Eu estou bem minha querida" e da minha boca uma única palavra, avó avó avó avó. O mundo a engolir-me no receio de te perder ali, naqueles segundos. Mas nessa noite tu voltaste para mim, abraçaste-me enquanto eu chorava e pedia-te que nunca me deixasses. Embalaste-me bem encostada a ti e prometeste-me que nunca, por nada deste mundo, me deixarias. Eu sei que estavas a mentir, há coisas que são inevitáveis, assim como tu sabias que a mentira que me contavas apenas adiava a certeza do pior dia da minha vida. Hoje acordei quase sem respirar como na tarde em que te fui ver... pela última vez. Mas eu não sabia que era a última, a derradeira. Fiz questão de não me vestir totalmente de preto, sabia que tu não gostavas mas chegou ao ponto em que desististe de me dizer fosse o que fosse sobre esse assunto. Entrávamos sempre na mesma ladaínha: "Sempre de preto! Sempre de preto porquê querida?!" Ó avó já sabes que eu sou assim! "No dia em que eu morrer de que côr é que te vais vestir?" Visto vermelho avó, nesse dia visto vermelho hehehe Ríamos, tu abanavas a cabeça e eu pendurava-me no teu pescoço enquanto te sufocava com beijos. Nesse domingo, o último em que me sorriste, vesti umas calças de ganga, uma t-shirt roxa, escovei muito bem o cabelo, como tu costumavas fazer, e fui ver-te. A mamã disse-me para entrar primeiro para matarmos as saudades, só nós. Eu tinha acabado de chegar de um trabalho que me havia obrigado a ficar imenso tempo fora e vinha morta de saudades do teu cheiro, dos teus mimos. Ela indicou-me qual o quarto em que estavas. O meu coração a bombar o sangue a uma velocidade incrível, mas conforme eu me aproximava os passos ficaram mais lentos e a respiração mais pesada. Entretanto tinha a porta do teu quarto, aberta, à minha frente e o teu corpo deitado numa cama estreita, a cabeça voltada para a janela, não me ouviste chegar e eu... eu recuei dois passos e não consegui entrar. Chorava copiosamente e não queria que me visses assim. Fiquei encostada à parede, do lado de fora, o tempo suficiente para conseguir acalmar a respiração e estancar as lágrimas. Voltei a entrar. Foi então que tu te voltaste, tentaste erguer os braços para mim mas não conseguiste e então sorriste-me. Minha querida... eu mal te conseguia ver através da cortina de lágrimas que jorrava ininterruptamente dos meus olhos e que deitava por terra o falso sorriso que eu te mostrava. A mamã entrou logo de seguida, começou a falar contigo e estrategicamente, colocou-se entre nós. Eu não consegui sequer dizer uma única palavra até ao momento em que me despedi de ti, sem saber que era mesmo a despedida. Sabes, eu acreditava que tudo ia passar, que ias melhorar e voltavas para casa. Disseste-me que não me querias ver a chorar, que não havia motivo para isso. Eu disse-te que chorava porque me ardiam os olhos, que estava muito cansada das filmagens. Deste-me um beijo, sussurraste-me ao ouvido "Minha querida, não chores. Está tudo bem.", sorriste e fechaste os olhos. "Agora preciso de descansar", disseste e eu vim-me embora depois de me certificar que estavas apenas a dormir e pedir, insistentemente, às enfermeiras que te velassem o leito.
Sabes minha querida, chegou a altura de confessar o meu egoísmo. Não queria que te fosses porque sabia que o peso da tua falta seria mais do que o que posso suportar, porque o teu amor era a única coisa certa que eu tinha na vida, porque me sabia bem o calor do teu xaile, porque me dói a tua ausência, porque tu eras a única que amparava as minhas quedas e fazia com que esta solidão fosse mais pequena, porque esta dor corta cada vez mais fundo e mais e mais e mais.
Há uns tempos atrás, a mamã encontrou-me sentada nas escadas a olhar para aquela fotografia da pantera côr-de-rosa, que era bem maior do que eu, mas que arrastei comigo para ficar ao nosso lado aquando da foto. A mamã perguntou-me há quanto tempo eu não te ia ver, há quanto tempo não te levava rosas brancas, as tuas rosas brancas. Disse-lhe que não era preciso, porque desde aquele Novembro que tinhas as rosas contigo.
"Tens que a deixar ir."
Tenho que te deixar ir...
Não vou ver-te minha querida, porque simplesmente não consigo olhar para algo tão absurdo como a tua sepultura, a abominável prova de que não voltas, não voltas... e porque é que não voltas?
Porque é que tiveste que ir? Porque é que teve que ser assim? Não me interessam explicações lógicas, porque na tua morte, na dor que ficou eu não encontro lógica. E teimo em não aceitar, dói hoje, como doeu ontem, como doeu no dia antes de ontem, como doeu naquela manhã, como dói todos os dias e eu não sei mais o que hei-de fazer.