quinta-feira, agosto 31, 2006

Par de jarras

Para Ana:
Não consigo precisar o dia em que te conheci.
Recordo-me do teu cabelo curto e olhar curioso, que hoje, anos mais tarde, sei que é uma constante. A vida passou por nós, não apagando as recordações dos anos de estudo, bebedeira, conversas infindáveis, telefonemas mais longos do que as nossas carteiras podiam suportar, passeios intermináveis pelas ruas de Coimbra, olhos inchados da choradeira, infinitos segundos de cumplicidade.
Lembro-me que ao fim de meses de convivência, quando a nossa amizade começava a dar os primeiros passos, não sabias qual era o meu curso, julgavas que eu era irmã do Sérgio e da Xana (não havendo qualquer laço familiar entre nós) e que conhecíamos pouco da vida uma da outra, mas ao mesmo tempo era como se já nos tivéssemos conhecido à eras. Podia fazer uma lista infindável de momentos ridículos, importantes, tristes, preocupantes, mas mesmo que os enumerasse aqui e agora, acabaria por esquecer algum porque há sempre algo que fica perdido no fundo da caixinha da memória, mas é aí que tu entras e preenches a lacuna, porque sempre fizeste parte de mim.
Agora, tantos anos depois, a vida levou-te de volta à tua cidade. Tivemos que crescer o melhor que sabíamos e eu já não sou a mesma miúda que te cravava dormida no chão da sala e tu já não és a mesma miúda que acabava a noite a dizer "Puseram-me alguma coisa na bebida". No entanto as conversas intermináveis continuam, os telefonemas nocturnos a horas muito pouco próprias mantém-se, mas as diferenças fazem-se notar.
Sabes "Tavira", no meio de toda a força, carácter vincado, lutas pessoais, sensibilidade mais que extravasante houve algo que ganhou lugar em nós as duas, aquilo que nunca desejámos, o que sempre repudiámos e combatemos cada uma à sua maneira: a desilusão, a certeza de que a palavra pouco para nós é menos do que o seu verdadeiro significado e que o mundo nunca nos bastará.
Aguardo-te aqui, na cidade onde viveste uma vida que nunca esquecerás, onde tanto se escreveu mas ficou ainda mais por dizer. Espero-te no café do costume, enquanto traço o mapa de novos dias de terror...

segunda-feira, agosto 28, 2006

Dívida do coração

Hoje seria mais um dia de festa como todos os outros em que estiveste ao nosso lado... A mamã andaria atarefada a tentar vir mais cedo para casa, traria um bolo especial com pouco açúcar para tu poderes comer, eu sairia mais cedo do trabalho e passaria na florista para te levar um ramo de rosas brancas, as tuas favoritas. E tu... tu estarias sentada no jardim à nossa espera fazendo de conta que não sabias que te preparávamos uma festa, alegarias que já não tinhas idade para soprar velas e que te bastava a família ali, junto a ti, como sempre desejaste.
Sabes, recordo-te todos os dias. Todos os dias me pergunto o porquê da tua partida. Assim. Tão de repente, mesmo sabendo que não foi assim tão repentina, mas não consigo senti-la de outra forma.
Hoje não é dia de festa. A mamã hoje não irá a casa e ainda nem sequer me telefonou. Sinto que está a evitar falar comigo pois sabe que, inevitavelmente, falaremos que hoje seria e é, o dia do teu aniversário.
Minha querida avó, nos dias em que por acaso passo em frente à tua casa já não páro, no entanto vejo as janelas entreabertas, como se o facto do sol lá entrar pudesse de algum modo trazer calor às paredes que te abrigaram nessa longa jornada que foi a tua vida. Aquela casa, que ainda hoje evito olhar, viu-te viver, criar os teus filhos e depois eu. Aquela casa acompanhou o acinzentar dos teus caracóis, acariciou as rugas que o tempo escreveu na tua pele, ouviu os teus ralhos para comigo aquando das minhas diabruras. Sim! Eu sei que muitos daqueles cabelos brancos se deviam a mim e ao meu feitio "torcido" como tu costumavas dizer. Lembro-me das minhas primeiras noitadas e da tua presença à janela, insone, enquanto eu não chegava.
Sabes avó, ontem parei em frente ao local onde agora descansas. Já era noite cerrada e eu não pude entrar. Deixei-me ficar agarrada ao portão alto, de ferro negro. Cravei as mãos nas barras de metal frio, fiquei muito hirta e colei o meu olhar sobre o mármore que acolhe a tua foto. Ao lado estava uma vela muito pequena e a luz tremia, no entanto consegui ver o teu sorriso.
Hoje, tentei não pensar na tua falta.
Faço este estúpido jogo quase todos os dias mas não consigo deixar de a sentir.
Avó, decidi ir comprar as tuas rosas favoritas, as brancas.
Vou levá-las até ti, tendo sempre a contante certeza de que nunca conseguirei compreender porque te foste.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Na noite passada...


"Cannot get inside
Show me your ticket please
I didn’t see it coming
Lost the ticket again(...)"


The Temple - Ticket Please


O silêncio ensurdecedor, rasgado pelas palavras. A pele quase em chamas no caminhar sob o sol atormentado, fio condutor de uma das estradas que leva ao centro do labirinto da coroa. Na noite sufocava o meu corpo extenuado.
Ainda que por poucos minutos.
Foi só para deitar o meu olhar...


Foto por Carlos Ferreira

sexta-feira, agosto 18, 2006

So cold


Estou na janela do meu quarto a olhar a noite e a ouvir Anathema. Onde quer que estejas sopro-te um beijo...
Ass. Menina

segunda-feira, agosto 07, 2006

Raízes

O silêncio escreve-se nas vírgulas da inquietação de quem não vê para além da espera. As ruas da grande cidade devem estar mais quentes que o próprio inferno, mas não são esses os trilhos que engolem os meus pés descalços.

Estou na terra. Minha. Não pedida. Estou com os pés assentes. Na terra. Quente. (des)Confortável. Sem ar. Porque já não necessito. Respirar. Amarra à terra. Que não lhe quero o nome. Desta terra. Vazia. O olhar apaga-se. A outra. Terra. Não tem limites. Eu. Lá. Os pés fincados. Na outra. Cidade-terra. Alta. Bradada terra. Onde jaz. Sempre na terra. O que resta. Depois do fogo. Vive assim. Lá. Nessa terra. O desejo. Meu. Coração.
As minhas ruas, ao contrário dos passeios em círculo que dou na minha mente, não acompanham o teu rio. Mesmo assim caminho até caír, enquanto a luz se extingue...