Par de jarras
Para Ana:
Não consigo precisar o dia em que te conheci.
Recordo-me do teu cabelo curto e olhar curioso, que hoje, anos mais tarde, sei que é uma constante. A vida passou por nós, não apagando as recordações dos anos de estudo, bebedeira, conversas infindáveis, telefonemas mais longos do que as nossas carteiras podiam suportar, passeios intermináveis pelas ruas de Coimbra, olhos inchados da choradeira, infinitos segundos de cumplicidade.
Lembro-me que ao fim de meses de convivência, quando a nossa amizade começava a dar os primeiros passos, não sabias qual era o meu curso, julgavas que eu era irmã do Sérgio e da Xana (não havendo qualquer laço familiar entre nós) e que conhecíamos pouco da vida uma da outra, mas ao mesmo tempo era como se já nos tivéssemos conhecido à eras. Podia fazer uma lista infindável de momentos ridículos, importantes, tristes, preocupantes, mas mesmo que os enumerasse aqui e agora, acabaria por esquecer algum porque há sempre algo que fica perdido no fundo da caixinha da memória, mas é aí que tu entras e preenches a lacuna, porque sempre fizeste parte de mim.
Agora, tantos anos depois, a vida levou-te de volta à tua cidade. Tivemos que crescer o melhor que sabíamos e eu já não sou a mesma miúda que te cravava dormida no chão da sala e tu já não és a mesma miúda que acabava a noite a dizer "Puseram-me alguma coisa na bebida". No entanto as conversas intermináveis continuam, os telefonemas nocturnos a horas muito pouco próprias mantém-se, mas as diferenças fazem-se notar.
Sabes "Tavira", no meio de toda a força, carácter vincado, lutas pessoais, sensibilidade mais que extravasante houve algo que ganhou lugar em nós as duas, aquilo que nunca desejámos, o que sempre repudiámos e combatemos cada uma à sua maneira: a desilusão, a certeza de que a palavra pouco para nós é menos do que o seu verdadeiro significado e que o mundo nunca nos bastará.
Aguardo-te aqui, na cidade onde viveste uma vida que nunca esquecerás, onde tanto se escreveu mas ficou ainda mais por dizer. Espero-te no café do costume, enquanto traço o mapa de novos dias de terror...