sexta-feira, janeiro 19, 2007

Daddy's girl





O segundo e o último nome são teus.
As mãos dela são as tuas.
O olhar de medo, foste tu que lho ofereceste.

Era de noite e levaste-a para andar na abelha Maia que ficava naquela praça junto ao jardim. Aquele jardim ao lado do mercado, onde ela dizia sempre: "Cheira aos peixinhos! "
Levaste-a pela mão, a mão pequenina sempre cravada na tua, os pés pequeninos, aos saltos, porque queria dar passos tão grandes como os teus.
Chegaram à praça, sentaste-a na abelha Maia e com uma moeda deste-lhe uma viagem de minutos, nas costas de um insecto sorridente que cantarolava a par com ela. Porque ela sabia a canção toda, lembras-te?! Hoje em dia, ela já não se lembra da letra da canção, mas de vez em quando ainda lhe ecoa na mente.
A abelha parou e foram aos gelados, não havia visita ao jardim sem que ela tivesse direito a um copo de gelado de chocolate, era sempre de chocolate. E ela não conseguia comer à velocidade devida e acabava sempre por sujar o vestido, as mãos , a cara ficava num estado lastimável das lambidelas no gelado.
Recordas-te dos gelados de chocolate? Não! Ela sabe que não te lembras, mas lembra-se de ser noite e tu a levares para o jardim que ficava ao lado da praça da abelha Maia. Lembra-se de trazer o copo de gelado nas mãos, de chamar por ti e tu não estares lá.
Ficou muito quieta e piscou os olhos porque estava escuro e os bancos do jardim e as árvores pareceram-lhe enormes. O gelado escorria-lhe pelas mãos e ela ali, no meio do jardim a afastar o cabelo dos olhos, porque com toda a certeza tu estavas lá, ela é que não estava a conseguir ver-te, porque tu nunca a irias deixar ali. Só.
Continuou a chamar-te, gritou por ti o mais que a voz de 5 anos permitia e as lágrimas deixavam. No meio dos berros apareceu uma senhora que lhe perguntou se estava ali sozinha, se sabia o nome, onde morava, o nome do pai, da mãe, como é que ela se tinha perdido. Ela disse tudo o que sabia, o que se conseguia lembrar e foi então que tu apareceste. Vinhas a rir.
A menina não percebeu porque é que rias, já que ela chorava copiosamente. A senhora olhava para ti atónita enquanto tu lhe explicavas que eras o pai e que, teres-te escondido, tinha sido apenas uma brincadeira. Uma brincadeira que lhe pareceu interminável… Ela olhou para cima, para ti, abriu os olhos o mais que pôde. Tu continuavas a rir e a única coisa que disseste foi: “Olha para ti, estás toda suja de chocolate.” , não lhe perguntaste se tinha tido medo do escuro, medo de não te voltar a ver, de não voltar a ver a mãe, as bonecas, o cão, tu não lhe disseste nada. Limitaste-te a agarrar-lhe na mão, sem força, e a levá-la para casa.
Ela não fez o caminho aos saltos.
E não se importou se chegava a casa.

8 Comments:

Blogger Winterdarkness said...

Bem esta história deixa-me momentaneamente sem palavras... Quantas vezes aqueles que nos devem proteger e amar nos ensinam a conhecer as piores coisas da vida como o medo, a falta de amor, a falta de cuidar daquele que deveria ser para eles o tesouro mais precioso. Aqueles que supostamente nos deveriam amar mais sao tb aqueles que às vezes mais nos magoam com a sua indiferença, a sua fúria sem razão sobre nós, a sua capacidade de nos ferirem bem fundo parecendo nao se importar que estejamos no desespero, que estejamos sozinhas, que estejamos tristes, que para sempre estejam quebrados os laços que nos deveriam ligar a essa pessoa... Beijos grandes.

20/1/07 05:50  
Anonymous Anónimo said...

Como eu conheço essa sensação... a sensação de ser atirada às ondas, que me pareciam gigantescas do cimo dos meus três anos, e de o ver a rir-se na margem, a ver que eu não conseguia nadar e sem fazer nada para me ajudar, porque era uma brincadeira engraçada ver-me tão aflita... foi-me buscar quando já quase me afogava... como eu conheço essa sensação...essa sensação de estar à marcê de alguém que se diverte com as fragilidades dos outros. Felizmente, essa era acabou. Para mim e para ti.

20/1/07 19:21  
Blogger Lilis said...

Dark Kisses...
até logo!

21/1/07 15:24  
Anonymous Anónimo said...

Eye of Horus e Yashmeen,

As vossas palavras revelam momentos de desesperada perda de inocência. Comungo convosco.

No entanto, permitam-me dizer o seguinte:

Parece-me que aqueles que "supostamente nos deveriam amar mais" estão, de certo modo, perto, ainda que numa "era" já (ultra)passada. Não vos digo que devem tentar perdoar, ou esquecer. Apenas que ambas podem ter a força de esticar a mão e tentar renovar o que um dia se desviou do caminho. Pode ser algo doloroso, mas não Dói. Digo-vos isto,

porque eu já NÃO posso. †

21/1/07 17:00  
Anonymous Anónimo said...

Fiquei num misto de falta de palavras e enchente das mesmas... se por um lado fico a pensar na menina de 5 anos ali deixada por cruel brincadeira de adulto penso tambem na mulher que ela se tornou ou tornará... algo se quebrou naquele dia, naquele momento o pai deixou de ser o heroi aos olhos dela... foi-lhe tirado muito cedo o sonho do pai... talvez ele a continue a acompanhar mas jamais sera o mesmo.. aos seus olhos algo se perdeu para sempre... e ele nunca tera consciencia do que foi e quando foi... e ela sempre guardara esse momento no coração...

22/1/07 08:15  
Blogger Lumig said...

Não sei se entendo o que ele teria em mente... de qualquer das formas, não é provação para uma criança nessa idade.

Voltarei para te ler com mais atenção

22/1/07 17:21  
Blogger XAyiDe said...

Todas as meninas e meninos se sentiram com mãos de cera. O coração era de gelado, cremoso, com pedaços de personalidade que se fundiam na inocência dos dias. Qualquer criança sentre grande a injustiça, a dor, as pernas do pai, da mãe, do mundo. Os traumas devem ser lambidos como chupa-chupas, sem guardar o pauzinho que os sustenta.

24/1/07 11:17  
Anonymous Anónimo said...

D stands for Darkness. M stands for Music, eu também já não posso. Há pessoas que morrem dentro de nós. E há lápides que não se removem. Como há caixas de Pandora onde, no fim, não mora a esperança.

28/1/07 14:37  

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