Água de lava
Depois da noite mergulho no quente pegajoso de mim. Da minha boca já não se notam as exalações metafóricas que lanço pelo ar eléctrico. Consigo ouvir o zumbido do teu pentear mecânico enquanto não me diriges o olhar. Vou pestanejar uma única vez, longamente, esquecendo que me apeteces agora e que te moves alvo, sulcando o chão sonoramente para que te sinta o estremecer nervoso dos passos.
Retiro as mãos da cama aquosa. Coloco-as à luz verde em jeito de raio-x. Transparências. Mergulho-as novamente, não quero que quebrem no frio.
Sais. Entras.
Voltas a saír.
Eu descanso na dormência da água agitada pelas tuas vindas silenciosas.
Invades de novo. Ignoro.
De novo o pentear mecânico, desta vez azul.
Envergas o negro de sempre, não demasiado, não pouco, o negro que baste para te sentires tu, para não seres um negro-eu.
Sais. Não sais.
Aninhas-te num canto do chão e olhas-me, quieto no fumo do cigarro que trilhas entre os lábios. Volto a face para a parede, faço de conta que não estás, porque não estás realmente. Coloco o indicador em jeito de silêncio, porque sabes que neste jogo não vale dizer o que ias verbalizar. Sabes que não adianta e eu já não tenho jogadas novas.
Rastejas para o meu lado e sinto-te enfiar as mãos no calor circundante à minha pele.
As águas continuam agitadas.
A tua mão húmida percorre-me a nuca, perde-se no meu cabelo, chega-me às pálpebras que fecho, desce à boca e saboreio-te a palma molhada.
Levantas-te e sais.
De novo.
Mais uma vez vais.
Escorrego o corpo pela água, agora serena, até não ver nada para além do turvo.
5 Comments:
por enkuanto podes ver tudo turvo mas cedo a neblina passara :)
belo, este texto, muito belo. um dia conseguirei escrever um "tu" nos meus textos sem logo o apagar. mas ele nunca lá está. ou está?
que texto tão bonito e tão bem escrito. sabes usar muito bem as palavras.
um beijo do tamanho do mundo:
luna
Bem, tu escreves mulher! "ouvir o zumbido do teu pentear mecânico" - muito interessante.
Beijoca,
João Nery
Linda tens muito jeito para as palavras sim; o texto ficou muito bonito! Sabes, as esperas, as indecisões, as idas e vindas por vezes de uma forma súbita fazem-nos sofrer ao nos deixarem expectantes pelo que vai acontecer a seguir e isso muitas vezes torna-se um vício... Eu também espero silenciosamente tentando preparar-me para o choque que vai ser e sei que nunca o vou conseguir completamente...
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