quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Água de lava

Depois da noite mergulho no quente pegajoso de mim. Da minha boca já não se notam as exalações metafóricas que lanço pelo ar eléctrico. Consigo ouvir o zumbido do teu pentear mecânico enquanto não me diriges o olhar. Vou pestanejar uma única vez, longamente, esquecendo que me apeteces agora e que te moves alvo, sulcando o chão sonoramente para que te sinta o estremecer nervoso dos passos.
Retiro as mãos da cama aquosa. Coloco-as à luz verde em jeito de raio-x. Transparências. Mergulho-as novamente, não quero que quebrem no frio.
Sais. Entras.
Voltas a saír.
Eu descanso na dormência da água agitada pelas tuas vindas silenciosas.
Invades de novo. Ignoro.
De novo o pentear mecânico, desta vez azul.
Envergas o negro de sempre, não demasiado, não pouco, o negro que baste para te sentires tu, para não seres um negro-eu.
Sais. Não sais.
Aninhas-te num canto do chão e olhas-me, quieto no fumo do cigarro que trilhas entre os lábios. Volto a face para a parede, faço de conta que não estás, porque não estás realmente. Coloco o indicador em jeito de silêncio, porque sabes que neste jogo não vale dizer o que ias verbalizar. Sabes que não adianta e eu já não tenho jogadas novas.
Rastejas para o meu lado e sinto-te enfiar as mãos no calor circundante à minha pele.
As águas continuam agitadas.
A tua mão húmida percorre-me a nuca, perde-se no meu cabelo, chega-me às pálpebras que fecho, desce à boca e saboreio-te a palma molhada.
Levantas-te e sais.
De novo.
Mais uma vez vais.
Escorrego o corpo pela água, agora serena, até não ver nada para além do turvo.

5 Comments:

Blogger Sorrow_Leviathan said...

por enkuanto podes ver tudo turvo mas cedo a neblina passara :)

22/2/06 10:22  
Blogger colherdechá said...

belo, este texto, muito belo. um dia conseguirei escrever um "tu" nos meus textos sem logo o apagar. mas ele nunca lá está. ou está?

22/2/06 11:10  
Blogger Unknown said...

que texto tão bonito e tão bem escrito. sabes usar muito bem as palavras.

um beijo do tamanho do mundo:

luna

22/2/06 18:22  
Anonymous Anónimo said...

Bem, tu escreves mulher! "ouvir o zumbido do teu pentear mecânico" - muito interessante.
Beijoca,
João Nery

23/2/06 03:44  
Blogger Winterdarkness said...

Linda tens muito jeito para as palavras sim; o texto ficou muito bonito! Sabes, as esperas, as indecisões, as idas e vindas por vezes de uma forma súbita fazem-nos sofrer ao nos deixarem expectantes pelo que vai acontecer a seguir e isso muitas vezes torna-se um vício... Eu também espero silenciosamente tentando preparar-me para o choque que vai ser e sei que nunca o vou conseguir completamente...

24/2/06 05:38  

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